quarta-feira, 4 de abril de 2012

Lei Maria da Penha e compreensões do judiciário sobre violência doméstica contra as mulheres.

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Vanda Regina Albuquerque


Quando dados apontam que 4 em cada 10 mulheres já sofreram violência doméstica, patologizar o agressor é uma saída preventiva?

Há quase um mês estou em Brasília e tenho participado de espaços onde se debate a questão da violência contra a mulher e a Lei Maria da Penha. Daqui, além da indignação com os altos índices de violência contra a mulher – o Correio Brasiliense divulgou no dia 29 de março que são registrados 33 casos de agressão por dia em Brasília e, na publicação do dia anterior, informou que a cada dia, duas mulheres são estupradas diariamente -, levarei para minha cidade Natal a preocupação de que uma onda de patologização de agressores em caso de violência doméstica tem adentrado no judiciário da Capital Brasileira, com falas semelhantes também de parlamentares.

Assisti incomodada a uma palestra onde uma promotora exibiu o empenho de seu trabalho em buscar brechas na legislação para "Suspensão Condicional do Processo" em casos da Lei Maria da Penha, mesmo o Supremo tendo julgado a impossibilidade de retirada da queixa pela vítima como crucial para os casos de violência doméstica contra mulher. Para a jovem promotora, o agressor está envolto por problemas de ordem emocionais/psíquicas, violência doméstica é diferente de outros crimes mais graves como latrocínio e sequestro... E por isso, na promotoria que a promotora atua, foi implementado um trabalho de acompanhamento psicológico ao agressor, que por informação dela a baixa evasão se dá porque esse acompanhamento é feito por intimação.... Ela retoma a fala de um ator que fez papel de agressor em novela " A agressão é pedido de socorro". A mesma também proferiu toda uma ponderação em decretar prisão preventiva e os argumentos variaram em: As mulheres não querem que seus companheiros sejam presos, elas precisam desses homens para alimentar os filhos...

A essa altura, o tamanho da minha angustia já ultrapassa o percurso da São Silvestre, sendo diminuída quando o palestrante seguinte o juiz Dr. Bem-Hur Viza, do Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Núcleo Bandeirante – TJDF, iniciou sua fala contando uma cena de sua filhinha de 3 anos, que passando das 22h da noite, ela o aguardava ansiosa para dar-lhe uma braço e pedir para coloca-la para dormir. Dessa forma, reconhecendo a dificuldade de um juiz julgar o afastamento de um pai do lar, sabendo dos possíveis traumas do rompimento de um lanço parenteral tão importante para formação de um ser.

Mas de acordo com o magistrado, seu julgamento é racional e se baseia na confiança em que deposita no trabalho dos policiais civis e militares, onde sabem proceder com o registro das queixas das mulheres. Para ele, ameaça é tão grave quanto o homicídio, porque nada garante que o autor, linguagem jurídica para falar do acusado, não vá cometer as vias de fato. E o homicídio já não há mais o que ser evitado. Por isso sua radicalidade em conceder medidas protetivas e também e pedir prisão preventiva para todos os casos de descumprimento da medida, porque o mesmo entende que é desordem! E relata: os agressores invadem as casas das vítimas, destelham para poder entrar e voltar a agredir e muitas vezes, mata-las. E lança a pergunta: Se eu, que sou pago pelo Estado, para preservar a vida dessas mulheres deixo de conceder uma medida protetiva ou prisão preventiva e essa mulher chegar a morte, o Estado não é responsável?

Dr. Bem-Hur vai relatando da dificuldade que encontra com servidores, promotores, defensores e colegas juízes que comungam da visão comum como a mulher que continua/volta para o agressor porque gosta de apanhar, também lembra da dificuldade que as mulheres encontram quando seus casos vão para vara da família, dado a alta demanda dessa vara e a consequente demora para audiência. Para ele, as decisões nos casos da Lei Maria da Penha tem de ser criminal e rápida, com determinações judiciais para guarda das crianças, pensão alimentos. Pelo simples fato de que a mulher em situação de violência não está em condições de negociar, por se tratar de uma relação desigual, se não, ela não estaria apanhando...

E ele continua a relatar outra dificuldade séria encontrada: falta defensores em número suficiente, onde acaba recebendo em audiência o ofensor acompanhado por um defensor público e a ofendida sem representação de advogados, dado que é inconstitucional um acusado não ter defesa, e como não há um número suficiente de defensores a prioridade é para o acusado. Mas que buscando solucionar esse problema, o juizado onde atua buscou parceria com a OAB e Cursos de Direitos para tentar suprir a falta de defesa para as vítimas.

Nesse momento, sinto alegria de perceber que há vozes sensatas no judiciário tentando contornar as barreiras sociais, por compreender que a questão da violência contra a mulher é tão grave quanto qualquer outro crime, mas é específica porque ela se ancora em bases culturais difíceis de ser ultrapassadas e solucionadas pela simples vontade das vítimas. E por isso, tem de ser tratada pelo judiciário com singularidades e deve envolver um trabalho multidisciplinar – judicial, policial, de saúde pública, de assistência social e de mudança cultural.

O receio de um juiz de determinar o afastamento físico de um pai agressor do convívio de seus filhos, deve ser suspenso e apoiado pela sociedade, quando ouvimos costumeiramente os relatos de que agressores não poupam a presença de seus filhos pequenos e chegam a bater nas mães, mesmo com bebês no colo, o que se distancia em larga medida de um pai amoroso, que ainda cansado de um puxado dia de trabalho, disponibiliza-se a conversar, abraçar e colocar sua filha de 3 anos para dormir.

Considerações

Não se trata de polarizar os dois perfis acima relatados, mas eles servem para a gente perceber como diferentes compreensões de agentes jurídicos e outros agentes públicos corroboram para o sucateamento da implantação da Lei Maria da Penha no Brasil e, consequentemente, para não diminuição da desigualdade de gênero e mudança de comportamento da cultura machista, responsável pela constante violação dos direitos das mulheres. Uma vez que já conhecemos as dificuldades políticas em efetivar as redes de assistência em número e qualidade no Brasil, onde a não assinatura do pacto pelo fim da violência contra a mulher de alguns estados e a não previsão orçamentária estadual para as políticas públicas para as mulheres materializam sua negação de contrapartida ao enfrentamento a violência contra as mulheres; Em todos estados brasileiros faltam Delegacias de Atendimento Especializado a Mulher (DEAM), Centro de Referência da Mulher, Casa Abrigo, dificuldade de diagnóstico da mulher em situação de violência na saúde, entre outros.

Nesse sentido, o debate no campo jurídico apenas acentua o quão dificultoso tem sido as tentativas de transformação cultural no Brasil, e que o caminho ao fim da naturalização da violência contra mulher continua longo e necessitando de apoio, reivindicação e controle social.

Vanda Regina Albuquerque é jornalista, socióloga e ativista do Coletivo Leila Diniz (Natal/RN) e da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB).

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