quarta-feira, 18 de abril de 2012


De Raposas e Reformistas: o PSD e a experiência democrática brasileira (1945-64) - de Lúcia Hippolito, Ed. Paz e Terra, 1985, 340 págs.

por Maria Victoria Benevides*


Agora, ( quinta feira/madrugada de 19 de Abril) estão no Jô Soares, mulheres envolvidas na política do país e falando de politica partidária e do livro em pauta.

Em 1964, segundo Lúcia Hippolito, "o comando pessedista assistiu, perplexo", a tomada do poder pelos militares. "Fragmentado, abúlico, disfuncional", o Partido Social Democrático deixava o palco iluminado da cena política. Como isso foi possível com o sólido PSD, o todo-poderoso partido da "república populista"? Aquele partido que soubera, com tanta habilidade, "administrar" e superar as crises dramáticas de 54, 55 e 61?

Este livro coloca e responde essas questões, embora a autora adiante que não pretendeu "escrever a história do PSD, tarefa por demais ambiciosa" (1). Mas seu estudo é, sem dúvida, uma contribuição valiosa e polêmica para a compreensão do que foi o partido, a meu ver de muitas "raposas" para poucos reformistas. As imagens correntes são recuperadas numa análise precisa - o "pessedismo mineiro", a conciliação e a tolerância, o cálculo político - que se completa com o primoroso "manual do bom pessedista". O perfil do PSD se identifica, ainda, na força eleitoral, na competência administrativa, na socialização das lideranças e... na falta de democracia interna.

Alguns pontos se destacam para a análise de todo o sistema, como as relações potencialmente conflitivas entre Executivo e Legislativo; a importância decisória do poder regional e local, bem como as exigências de alianças e coligações (partido nacional seria mesmo uma "ficção legal"?) e as condições para o equilíbrio de um pacto conservador. A tese central aponta o PSD como o fiador da estabilidade do regime, num sistema partidário pluralista, e que se mantém moderado até o final da década de 50. Até então o PSD encarna o centro, forte e por todos reconhecido, atuando ou omitindo-se (a tal "omissão preventiva") para preservar-se como o principal negociador político. A UDN esperneia, o PTB cresce, mas é o PSD que dá o tom. Apresentado originalmente como uma dissertação de mestrado no IUPERJ, este livro revela, de saída, uma qualidade nem sempre presente nas teses acadêmicas a breve introdução teórica é pertinente à pesquisa! Isto é, concordando ou discordando, em momento algum a "teoria" nos entendia como a tradicional "muleta" ou, em versão mais generosa, como uma digressão, sofisticada e inútil. A abordagem do esquema desenvolvido por Giovanni Sartori para a análise de sistemas partidários permanece diretamente vinculada ao objeto em estudo. De forma crítica e inovadora, Lúcia Hippolito reavalia o modelo sartoriano, apresentando a hipótese de que a tendência centrípeta do pluralismo moderado se dá justamente a partir da existência de um centro ocupado por um partido sólido - no caso o PSD e sua formidável política de arranjos e compromissos. Creio ser esta primeira vez que o instigante trabalho de Sartori (1976) é aplicado a um estudo concreto sobre partidos no Brasil. Dentre as questões levantadas, gostaria de retomar a argumentação em torno do PSD como "administrador das crises", e maneira como a variável "radicalização" é incluída no esquema teórico. Em decorrência, destacaria, na parte mais específica da análise histórica, minha discordância com o enfoque (não) dado ao papel dos militares, que aparecem fugazmente como atores secundários.

O PSD é apresentado, convincentemente aliás, como o fiador da estabilidade, por conseguir administrar as crises com eficiência(2). Seria interessante avançar um pouco a análise, certamente sedutora para todos - e não apenas para os pessedistas históricos - que sempre admiraram a sabedoria, a moderação e o equilíbrio do velho partido. Mas, o que vem a ser "administrar a crise"? Para responder a pergunta, em qualquer caso concreto, trata-se de definir a natureza da crise e explicitar como, politicamente, se contornam, adiam ou abrandam suas conseqüências. No exemplo em questão, mesmo admitindo-se a conciliação como a virtude por excelência do PSD, o que teria significado, na prática esse "conciliar" no plano econômico e político? Administrar ou gerir a crise indica, sempre, uma ação organizada para minorar os efeitos da crise, e não para atuar sobre suas causas; significa aceitar a manutenção das regras do jogo, a permanência do regime político e do sistema econômico. Nesse sentido, toda ação de administração da crise é conservadora, nunca inovadora, seja para a direita seja para a esquerda (já que lidamos com noções de centro e polarizações, justifica-se, como no livro, falar em esquerda e direita). Nessa perspectiva fica evidente, e Lúcia tem toda razão, a compreensão do PSD como partido de centro. No entanto, partindo-se apenas dessa constatação não se responde à pergunta crucial: seria possível evitar o colapso do regime pela simples continuidade da administração da crise, hipótese implícita no livro? Qual a verdadeira natureza da crise em 1964? Não se tratava, a meu ver - embora presente e aguda na conjuntura - de uma crise de representação popular ou do sistema partidário, mas, primordialmente, do funcionamento do sistema econômico e da legitimidade do político, contestado à esquerda e à direita. A atuação do PSD deve ser entendida nesse contexto. A desocupação do centro - de que fala a autora - ocorria como uma conseqüência inevitável, pois nas crises graves o centro, seja qual for, desaparece. Aliás, a fragmentação e o declínio eleitoral do PSD atingiram também o outro grande partido conservador, a UDN.(3)

Quanto à "radicalização", questiono a hipótese de Lúcia Hippolito sobre o sistema pluralista que se mantém "moderado" até o final dos anos 50. Não teria havido uma forte radicalização, já no início da década, na polarização pró e contra Getúlio? Lembro, como símbolo, as palavras do velho liberal Otávio Mangabeira, a lastimar a eleição do arquiinimigo: "O que se instalou no Catete com a volta do ex-ditador não foi propriamente um governo. Foi uma conspiração". E a "Banda de Música" da UDN, e o envolvimento dos militares com a facção lacerdista? Por outro lado, as oscilações do PTB e o desinteresse do próprio PSD que, como afirma a autora, preferia "não defender o governo", não indicariam que a radicalização florescia em terreno fértil, ferindo de morte a "conciliação" no segundo governo Vargas? (4)

Quanto ao papel dos militares, discordo radicalmente da "omissão" de Lúcia Hippolito. Em todas as crises do período (e desde o Manifesto dos Coronéis!), os militares tiveram ação tão marcante que seria impensável apresentá-los como coadjuvantes. Foram atores políticos de primeiro plano (lembro a definição de Afonso Arinos: "o grande partido nas horas de crise, é o Exército"). Em 1954 não me parece que foi o PSD quem "resolveu" a crise, mas o próprio Getúlio, com sua trágica opção pelo suicídio como arma política. Em 1961, se a emenda parlamentarista foi uma solução, "civil e política", não há como diminuir a eficiente pressão dos militares para "forçar o consenso". Não me parece igualmente razoável negligenciar o papel das Forças Armadas na crise de novembro de 1955, que definiria o poder do PSD e seus aliados. Como se sabe, a posse de Juscelino e Jango só foi resolvida na "administração da crise" pelos militares - a seu modo, é claro, com o famoso "contragolpe preventivo" do General Lott. Nesse ponto são dignos de nota os depoimentos de Juscelino - "meu governo se apoiava num tripé: o general ministro da Guerra, o coronel chefe de Polícia e o ministro da Justiça" - e de Tancredo Neves, que se referia aos militares como "co-responsáveis e agentes fiscalizadores junto ao governo" (5). A sabedoria maior do PSD, naquelas crises, estaria em perceber claramente de que lado sopravam os ventos da divisão entre os militares e dela se beneficiar. Ainda é Afonso Arinos - udenista mineiro, mas por isso mesmo identificado com o estilo pessedista - quem afirma: "a divisão das Forças Armadas é garantia do poder civil". As crises de 54 e 55, beneficiárias daquela divisão, adiaram a fatídica união de empresários com militares, receita infalível para o sucesso do golpe de 64.

A leitura desse livro provoca uma reflexão, das mais oportunas, sobre aquelas "heranças" que refletem, até hoje, a fragilidade de nosso sistema partidário. A "democracia controlada", sob a hegemonia do PSD, expõe as limitações do sistema de representação no populismo. Se a valorização da competição partidária e eleitoral garantia um mínimo de representatividade, o sistema permanecia bloqueado para a efetiva participação política das massas, então reconhecidas através do voto. Nesse sentido, uma análise mais interessante deste livro se refere ao conflito, dentro do partido, entre as "raposas" e a "ala moça", no início dos anos sessenta. Os dissidentes colocavam em risco os pilares da tradição política das elites, como o coronelismo, o clientelismo e a "oligarquização das chefias". Foram esmagados. Lúcia Hippolito conclui (e, felizmente, com frieza de analista, apesar de sua nítida admiração pela competência pessedista) que a "fuga do PSD do centro", descambando para a direita, contribuiu para a fragmentação do partido e para o colapso do sistema em 64. O que nos leva a refletir - com o devido "realismo", tão justificado por "eles" mesmos - se não seria esta a tendência natural dos partidos que se dizem "de centro", quando não têm a coragem de se afirmarem claramente conservadores de direita. Já que se fala, hoje, em "volta do populismo", em "retrocesso", em "radicalização para a direita", seria bom tentar entender como um "partido de centro", acuado pelas crescentes reivindicações da cidadania, poderia sobreviver sem "descambar" para a direita. Basta observar, por exemplo, os rumos do atual PFL e suas inclinações janistas. A morte de Tancredo Neves liquidou com seu velho sonho de forjar uma democratização à moda de 45, mas com o "PSD" no lugar da "UDN". Não deu certo. Talvez nos tenha sobrado, como lembrou Raymundo Faoro, (6) a perspectiva tragicômica de um "Estado Novo do PMDB".

 

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